terça-feira, 20 de maio de 2014

A cidade grande e o medo


Na cidade grande, alguns medos são constantes.
Existe o medo do assalto, arrastão, apagão. Existe o medo da falta de água e a rua mal iluminada.
A cidade grande dá medo quando para. Os ônibus entram em grave e você olha os seus sapatos. Não existe sapato suficientemente confortável para voltar para casa a pé, nas grande distâncias da grande cidade.
A cidade é grande e o medo só fica pequeno lá de cima do alto do morro. É tudo pequenez, insensatez.
É grande a vontade de ir embora da cidade grande, é pequena a vontade de continuar.


foto via: http://pokingsmot.net/ — Mona Hatoum’s Performance Still, 1985

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Ir-se

Tive medo e fui.
Conheci da primeira vez, como se prova um novo sabor, com calma e receio.
Nos meu pés ainda existiam correntes que não me deixavam ir mais longe. Mas forcei e fui. Aos poucos essas correntes desapareceram e viraram poeira que faz o pé no caminhar.
Conheci, andei, vivi, experimentei, provei, chorei, senti.
Não quis ir, mas fui.
No voltar foi uma dor desconhecida. Aquilo era o sentido puro da palavra saudade, sentida em cada pedaço de mim. Forte como o terremoto que me abalou.
Passei todos os dias sonhando com o voltar. Inexplicável o por quê. Era pura sede, vontade, ganas.
Voltei como se comesse depois de muito tempo uma comida que adorava. Querendo aos poucos para que não acabasse rápido.
Como devagar tudo aqui.
Pisei na areia quente da costa, pisei na água gelada do Pacífico, congelei os pés e queimei felicidade por dentro.
Fechei os olhos e sorri. Gracias a la vida que me ha dado tanto y tanto y tanto.
Não podia ser mais grata.
Mapa, boca que pergunta e chega a todos os lados.
Língua que prova as experiências.
Voltar tão em breve e sofrer tremores de saudade.

domingo, 30 de dezembro de 2012

novo ano


Aquele ano voou. A semana passava veloz como o dia e os meses eram semanas.
Estava tudo passando tão rápido e parecia que acelerava ainda mais, de acordo com a percepção que eu começava a ter da minha velhice.
Depois de uma época na vida, você descobre um grande segredo e uma grande assombra: somos perecíveis. Temos prazo de validade. Não nós apenas, como tudo a nossa volta. E foi ao descobrir isso que comecei a perceber a vida de outra forma.
Comecei a sentir a pele mudar, os traços se modificarem, o cabelo ficar mais fino. E todas essas transformações eram velozes como o tempo que passava por mim.
Junto com o sentimento de velhice, veio a velha e conhecida solidão. Os amigos que partiam para longe e os sorrisos que ficaram ainda mais preciosos por serem tão passageiros.
Naquele ano que passava ligeiro e cheio de novas percepções, os dias não pareciam colaborar. Eram cada dia mais cinzas e chuvosos. Dias escuros que eu achava tão singular em sua beleza tão triste.
Tomada pela tristeza dos dias, resolvi começar a dormir o dia todo. Ao abrir os olhos, depois de um sono prolongado, vi o que há muito tempo não via; o sol.
Ele entrou pela fresta da janela, desenhou um risco sobre a colcha, sobre o meu corpo, sobre o armário.
De tanto estremecimento pelo contato daquele calor repentino, desenhei no ar de sol, formas com o meu dedo. E enquanto eu dançava com as mãos no ar, dançava  também a poeira.
Sorri, na brevidade de uma nova paixão. Eu deitada, sentindo a vida me tocar.
Girei as pernas debaixo do lençol (senti acariciar a minha pele) e abri a janela.
Lá estava! A vida azul e amarela, novamente.
Saí para a rua, curtindo a sensação de não saber para onde ir. Mas queria eu continuar. Parei em uma praça e foi lá que percebi o quanto me amedrontei durante anos. As pernas travavam nas danças coladas ao corpo masculino, quando na verdade era muito mais fácil ser levada. 
E os outros também participavam do baile contínuo, a vida.
Duas senhoras conversavam sobre liberdade e solidão. Desejavam uma casa na praia para ir aos fins de semana, desacreditavam no amor. Homens não prestam, diziam elas.
Até o pão mofado tem um lado bom para se comer. Valerá a surpresa da indigestão?
Próximos de mim, um grupo de homens e mulheres já bem idosos, conversavam sobre música. Um senhor de olhos brilhantes, cantava como os antigos cantores de rádio. Músicas românticas, como as que as senhoras que maldiziam os homens, cantavam em seus quartos, sonhando com o que não foi.
E as pessoas iam e vinham naquela praça do dia ensolarado. E tudo que era belo e feio, ia também. E tudo o mais ficava em mistério.
               
Anita Correa. (escrito em 2009) 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

sol pela janela da sala

Éramos dois. Dividindo a mesma mesa, o mesmo chá, o mesmo sentimento.
Eu te olhava e você desviava o meu olhar.
Eu pensava que daqui há alguns anos eu vou pensar neste momento. 
Momento enquanto seguro a xícara de chá e te olho e você desvia os olhos.

E sempre que me sento nessa mesa, sento para te ouvir falar. Bebo o chá, absorvendo as suas palavras, 
sinto o aroma da tua pele e espero o momento em que seus olhos me olham e eu posso mover a boca no desenho de um sorriso. Só teu. 



É tanto amor compartilhado na mesma mesa só que você ainda não sabe. 

Noite passada eu te olhei dormindo. Em mais um desses momentos que te fotografo na memória para não te esquecer. 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Nunca tinham me contado que namorar uma escritora seria ser exposto em pelo e pele nas palavras escritas.
Ah, se tivessem me contado... Certamente eu teria tomado mais cuidado com tudo o que vivemos juntos. Teria parado para pensar em cada momento como poesia ou linhas de ódio e erotismo.
Nunca em muitos dos conselhos do meu velho pai, que se sentava na beirada da cama para me ensinar a arte de ser homem adulto, com suas sábias e às vezes demasiadas palavras, nunca o velho me ensinou a temer as escritoras. Deveria.
Brutas, sensíveis, frescas, com olhar de ave de rapina por tudo que se passa na vida.
Dedos no teclado ou caneta no papel, olhos perdidos no ar, ouvidos a escuta de cada palavra, momento que vire cena.
E dramáticas. Em excesso.
Mas é um drama que enrosca você em emaranhados de palavras. 
E às vezes o que mais me faz temer a estas mulheres escritoras é que transformam fatos cotidianos em pura beleza. 
Mas triste é ver quando se perdem em tristeza. E ou as palavras se perdem junto ou se desgastam na ruína. 
E nela, escritora, que me perco em cada linha. Confesso que a linha que me perco é outra. Na linha do teu corpo, no trajeto do seu passo, no movimento do sorriso e no abrir e fechar dos olhos.
Eu deveria temer a todas as escritoras, mas não. 

segunda-feira, 26 de março de 2012

a falta que você faz

A parede da entrada da minha casa é branca
Só reparei nisso depois que você foi embora.
Até então, a casa era pra mim marrom.
Cor do seu pelo e iluminada pelo seu olho cor de mel.
Mel teu que ia além dos olhos,
Invadia todos os cômodos da casa,
Cuidava, observava e admirava.
Agora as pessoas passam pelo portão
E você não está mais lá,
Converso contigo sempre que chego e saio,
Inventando a sua forma no quintal.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A casa e ele

Era uma casa abandona. Era um corpo em ruínas.
Naquele dia, no quarto do hospital, enquanto a enfermeira colocava a agulha da seringa em mim (Esteves dói quando eu aperto aqui?), eu olhei pela janela e comecei a me lembrar de minha mãe, da casa, da sensação de ter pertencido e não mais.
Quando eu ainda era menino, e ia levado pelas mãos de minha mãe, lembro a primeira vez que vi a casa. Fiquei pasmo frente ao vazio. Talvez naquele momento tenha sido a primeira vez que me senti só, mesmo com uma mão agarrada a minha. Minha mãe em sua pressa cotidiana me puxava sem perceber que ali eu me tornava homem, pois, começava a compreender a solidão.
Todos os outros dias de minha infância, adolescência, passei em frente à casa, que ficava na rua da minha. Em todas as vezes que a olhei ela continuava vazia. Da janela da casa, dava para ver a sala, a cozinha ao fundo, a falta de pessoas, o amontoado de folhas do tempo na varanda.
De uns tempos para cá uma placa de VENDE foi colocada no portão. De uns tempos para cá tenho visitado o hospital.  E descobri no meio de tudo que sou a casa, que antes eu admirava. Estou em ruínas assim como a casa. Estou vazio e triste.
Já faz um mês que não saio do hospital. Tenho toda uma rotina nova de visita de médicos, enfermeiros e parentes, poucos. E hoje olhando pela janela, só consigo pensar na casa. Queria saber quem a comprou, os móveis que colocaram na sala, se varreram as folhas da frente da casa. Prefiro pensar em tudo isso a pensar no que sempre pensamos quando encaramos a morte. Prefiro pensar em tudo que fica, do que em tudo que ficou para trás, o que deixei de fazer.
Talvez eu saia essa semana e possa olhar a casa. Talvez...
Esteves morreu na mesma tarde. Encarando a janela com olhar vago. Eu acompanhei de longe toda a sua permanência no hospital. Ele ficava no mesmo quarto que eu, na cama ao lado. Eu perguntei para um parente dele que veio buscar as coisas dele, o que tinha acontecido com a casa de que ele tanto falara. Ele me respondeu que a casa havia sido derrubada naquela mesma tarde. Parece que o novo dono queria algo totalmente diferente, sem passados.